terça-feira, 9 de setembro de 2008

apesar de.

Choveu tudo o que tinha de chover, pensei.
Por toda a noite presenciou-nos um friozinho gostoso, daqueles que a gente deseja que a vida se prolongue pelo resto do dia pela via do sono e da preguiça.
Uma pequena chuva ainda insiste, e desliza pelos telhados da pequena cidade.
Meu filho ainda dorme.
O vizinho, pessoa que não estimo, no apartamento do andar seguinte, lembra-me, com os seus sapatos de chumbo, uma manada de búfalos a correr pelos campos nos filmes de faroeste; acordou-me bem mais cedo do que eu precisava. Como se não bastasse, ligou o som com uma música cafona e sem sentido, fosse pelo menos Tom Zé.
Não obstante, minha avó chegou esse final de semana para começar um tratamento de saúde, aquela mesma avó que me humilhava na infância; lembro-me de quando ela comprou um cão pastor e o colocou solto no quintal, desde então odeio avós e outros animais...
Minha esposa durante todo o final de semana esteve envolvida em separar e organizar materiais para uma viagem de negócios que irá realizar. É sua primeira semana neste novo trabalho, ela é formada em farmácia mas os números do orçamento doméstico andam indomáveis.
O vizinho e suas patas de cavalo...finalmente... silenciaram.
Depois de contar de 1 até 50 várias vezes, resolvi levantar-me e cumprir os rituais necessários de higiene e zelo pessoal.
A chuva continua, magrinha, mas continua.
Sobre a mesa algumas cartas não respondidas e muitas faturas ainda não pagas.
Ouço música, enquanto procuro separar tecidos e tintas para uma aula que irei realizar a noite:

"solidão
que poeira leve
solidão
olhe a casa é sua
o telefo...
e no meu descompasso
o riso dela..."
Meu guarda-chuva está a postos. Pensei com veemência e gratidão: viva Tom Zé!, apesar de.

em: móbiles - hestórias e considerações.

Segundo Rascunho



Todos os outros jogavam sinuca de forma descontraída. Todos os outros faziam suas apostas. Todos os outros riam bastante, talvez como eu, todos os outros estivessem alegres apenas por fora.
...
Ensaiei jogar sinuca, pedi outra cerveja e ainda mais volume no Raul Seixas, neste sentido, acreditei que a bebida pudesse me preencher no que não me restava de mim mesmo. Mas a cada gole ingerido acrescentava-se uma gota de tristeza e outra vez eu precisava buscar mais alegria no próximo ‘copo de cólera’.
De um deles, de um de todos os outros, um pouco antes de sair exasperado pelas ruas, exigi que me acrescentasse mais bebida e colocasse o Raul Seixas a toda altura.
Ainda voltei ao boteco, e contrariando a todos, retirei o boné do rapaz que matou o meu vizinho, ele riu para os outros, calmamente, e falou: "nunca vi ele assim".
(Nunca vi ele assim, nunca vi ele assim é o caralho, pensei comigo)
Nenhum de todos os outros entendeu, quando em seguida, naquela moto, saí desesperado pelas ruas da cidade.
As ruas não estavam desertas, eu estava.


em: Móbiles - hestórias e considerações.

Por causa do "Gato Lilás"

Tarsila, uma gata siamesa, que conviveu conosco por alguns dias, apaixonou-se pelo ‘gato lilás’ de Aldemir Martins – uma reprodução da tela que possuímos em casa.
Investiu tudo nesta paixão, estudou sobre o artista e sua obra, incomodou a todos com o seu canto lastimoso e noturno, gastou as unhas arranhando os telhados alheios.
Não encontrando retorno algum desta paixão, chegou a cometer o suicídio 6 vezes, até decidir-se a pesquisar intensamente sobre arte contemporânea.
Certa noite, após buscar um diálogo intenso com a eternidade, ainda meio grogue e desolada, saiu para a rua e não mais a vimos.
Soubemos, algum tempo depois, que ela fora atropelada e tornou-se uma efêmera intervenção urbana.